Publicado no dia 17/06 no Blog Saúde Brasil:
Raquel Júnia
Da EPSJV/Fiocruz
Da EPSJV/Fiocruz
Além de usuários, trabalhadores e pesquisadores, há também servidores
públicos do campo jurídico que defendem hoje o SUS conforme está
previsto na Constituição brasileira, como um sistema público e
universal, no qual os serviços privados devem ter apenas função
complementar. Para os participantes da mesa “Lutas contra a privatização
da saúde no campo jurídico”, realizada durante o Seminário da Frente
Nacional contra Privatização da Saúde, está claro que propostas como a
transferência da gestão dos serviços de saúde para Organizações Sociais
fogem, e muito, do texto constitucional.
De acordo com o sub-procurador geral da República, Oswaldo Silva,
essa percepção é compartilhada também por outros colegas dele, tanto do
Ministério Público Federal, quanto nos estaduais. “A nossa missão
institucional é defender a Constituição e na defesa da Constituição, a
grande maioria dos membros do Ministério Público se posiciona contrária à
privatização da saúde. Como somos independentes, não existe um cacique a
mandar nos procuradores, essa independência nos possibilita a atuar
como advogados da sociedade”, garante.
Também participaram da mesa a auditora do Tribunal de Contas da União
(TCU) Lucieni Silva, o procurador-chefe do Ministério Público do
Trabalho da Paraíba, Eduardo Varandas, e a vereadora de Maceió Heloísa
Helena (PSOL).
Segundo Oswaldo, a maioria dos procuradores da República é contra a
transferência da gestão dos serviços públicos para as organizações
sociais (OSs). “Apesar de nosso anterior procurador geral da República
ter se manifestado quase que a favor dessa terceirização, o corpo dos
procuradores é contra”, afirma.
Ele cita a criação pelos procuradores de uma Comissão Permanente de
Defesa da Saúde (Copeds), que faz parte do Grupo Nacional de Direitos
Humanos (GNDH) ligado ao Conselho Nacional de Procuradores Gerais do
Ministério Público dos Estados e da União (CNPG). Oswaldo acrescenta que
a Comissão criou uma série de enunciados para orientar a atuação dos
seus pares – cerca de mil procuradores espalhados por todos os estados –
no que diz respeito às terceirizações nos serviços públicos de saúde.
Saúde Pública
Já no primeiro enunciado, os procuradores afirmam que “a saúde
pública deve ser exercida diretamente pela administração direta, devendo
o Ministério Público promover medidas para garantir esta diretriz
constitucional, inclusive o ajuizamento de ações civis públicas”. No
segundo enunciado, é reforçado o rechaço contra a transferência da
gestão dos serviços para as OS.
“Não é possível a transferência integral da gestão e da execução das
ações e serviços de saúde do Primeiro Setor (Estado) para pessoas
jurídicas de direito privado, como as organizações sociais (OS), as
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), ou
qualquer outra entidade do Terceiro Setor, pois a saúde é dever do
Estado necessitando ser promovida mediante políticas públicas, devendo a
iniciativa privada participar do Sistema Único de Saúde (SUS) apenas em
caráter complementar”.
Para Oswaldo, fica claro nos enunciados o significado da
complementaridade do setor privado na saúde, atualmente bastante
distorcida com os processos de transferência da gestão para as
Organizações Sociais. De acordo com o enunciado três, a
complementaridade “exige que o gestor demonstre impossibilidade fática
do Estado garantir diretamente a cobertura assistencial à população de
determinada área, com justificativa técnica e epidemiológica, não
podendo jamais significar a não responsabilização do Estado, bem como, a
mera substituição dos serviços públicos pela iniciativa privada”.
Transferência
Oswaldo exemplifica: “Então, como é possível usar a iniciativa
privada? Está faltando leitos de UTI, por exemplo, e o gestor não tem
condições de criar esses leitos com urgência, existe uma grave crise
epidemiológica, então, esses leitos podem ser alugados do setor privado
eventualmente e circunstancialmente. Não se pode transferir para o setor
privado a gestão e o planejamento desse serviço, ele é apenas alugado, é
isso que a Constituição permite”. Entre outros aspectos em defesa da
saúde pública, os enunciados dizem ainda que é vedada a terceirização
dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes de Combate às Endemias
(ACS).
Para o sub-procurador os militantes e profissionais de saúde devem
acionar o Ministério Público contra a privatização da saúde. “O
Ministério Público está à disposição de vocês, são funcionários públicos
muito bem pagos pelo dinheiro de vocês”, reforça.
“O Brasil faz piada de sua Constituição”
Também presente na mesa, o procurador do Ministério Público do
Trabalho da Paraíba, Eduardo Varandas, reforça a ideia de que a
Constituição de 1988 é clara no que se refere à saúde. Para ele, todos
os processos de terceirização e quarteirização via OS e Oscips são
demonstrações da “piada” que se faz no Brasil com o texto
constitucional. “A Constituição nunca foi cumprida em sua plenitude. Os
tribunais sonegam a efetividade das normas constitucionais e um dos
maiores reféns dessa estrutura que é patrocinada também pelo poder
judiciário é a saúde pública”, diz. O procurador acrescenta que o texto
constitucional aponta no artigo 196 que o estado deve ser o provedor da
saúde pública para a população brasileira ao dizer que “a saúde é
direito de todos e dever do estado”.
Eduardo reforça que as terceirizações e quarteirizações da saúde
pública via Os e Oscips têm se tornado “epidêmicas” em todo o país.
“Para burlar uma regra tão básica e democrática que é a do concurso
público, os estados contratam essas entidades terceirizadas, que na
prática não têm nada de interesse público. São, na verdade, embustes de
empresas onde já verificamos que há lavagem de dinheiro público,
superfaturamento, burla da lei das licitações e contratos. Além disso,
dentro da área de trabalho encontramos sonegação de FGTS, desvio de
função, salário pago aquém do registrado na carteira do trabalho,
inúmeras irregularidades”, lista. O procurador exemplifica com a
situação do Hospital de Traumas da Paraíba que está sendo gerenciado por
uma OS e têm apresentado uma série de problemas no âmbito das
obrigações trabalhistas e inclusive irregularidades encontradas pela
vigilância sanitária. Ele conta que o MPT da Paraíba ingressou com uma
ação civil pública pedindo a condenação do estado da Paraíba por danos à
população pela privatização do hospital no valor de R$ 10 milhões.
Segundo o procurador, o governo da Paraíba chegou a ser condenado, mas a
decisão foi questionada e ainda corre na justiça.
Terceirizações
De acordo com Eduardo, o setor de terceirizações é o que mais
concentra no Brasil acidentes de trabalho, assim como a maior quantidade
de reclamações por descumprimento da legislação trabalhista. “É um
setor que nem na estrutura privada dá certo, a própria justiça do
trabalho vê com ressalva nas empresas privadas. E querem trazer para uma
área da administração pública que é um direito personalíssimo e
fundamental que é a saúde? Isso é um crime”, pontua.
Eduardo situa a criação das OS e as Oscip no final da década de 90.
“Quando estas leis foram criadas bastava uma simples leitura para
entender que essas organizações jamais poderiam tomar o lugar do estado.
Jamais poderiam terceirizar. No caso do Hospital de traumas da Paraíba,
todo o hospital está terceirizado, a farmácia inteira está
quarteirizada. Quando o estado se despe do papel de protagonista, e
entrega a um terceiro, o terceiro não vai estar compromissado a fazer o
papel de provedor da saúde pública. É óbvio que o sistema vai ser
sucateado ainda mais. É óbvio que o compromisso com o interesse público
se não é do estado de quem será?”, questiona.
O procurador também convoca a população a estar vigilante. “Não
existe Ministério Público sem o apoio do povo e não existe saúde pública
e eficiente sem o protagonismo do povo. Não se pode ficar como
telespectador vendo o estado brasileiro fazer da saúde pública uma
mercancia de carne humana”, afirma. “O problema antes de tudo no Brasil
não é jurídico, a Constituição é clara, as pessoas é que tornam obtusas
as suas letras”, completa.
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